RESENHA - TUDO É RIO - CARLA MADEIRA
Classificação: ★★★☆☆
No livro "Tudo é Rio", da escritora brasileira Carla Madeira, podemos perceber que a escritora mergulha nas profundezas das emoções humanas, especialmente nas dinâmicas de relações disfuncionais marcadas pelo machismo, publicado em 2014 e redescoberto nos últimos anos com grande força entre os leitores brasileiros, o livro retrata como o patriarcado se infiltra nas subjetividades dos personagens, estabelecendo suas ações e afetos.
O casal protagonista, Dalva e Venâncio, iniciam sua trajetória sendo considerado um exemplo de amor e cumplicidade, porém, rapidamente revelam as fragilidades de um relacionamento estabelecido por intermédio de idealizações e possessividade, a euforia da gravidez dá lugar ao ciúme doentio de Venâncio, que não suporta dividir as atenções da esposa com o filho recém-nascido. A situação resulta em uma tragédia, com a morte do bebê durante um acesso de raiva do pai, a escritora, ao retratar esse acontecimento brutal, levanta questionamentos sobre a romantização da violência doméstica e a perpetuação da impunidade masculina – algo ainda muito presente na realidade brasileira, mesmo após a criação da Lei Maria da Penha, em 2006.
Diante disso, podemos perceber que a escrita levanta dúvidas importantes sobre o comportamento de Dalva, que permanece ao lado do marido mesmo após a morte do filho e a violência sofrida, entendemos que possa ocorrer de autora tentar imitar a realidade de muitas mulheres que, por diversos fatores sociais, emocionais e econômicos, não conseguem romper com o ciclo da violência, a ausência de denúncia e a reconciliação do casal soam artificiais. Além disso, entendemos que a literatura tem o poder de denunciar e provocar reflexão, mas em certos momentos o livro parece normalizar o inaceitável, o que gera desconforto e ambiguidade. Dado isso, entende-se que há o risco de romantização da submissão feminina pairando sobre a narrativa, tornando necessário um olhar atento e crítico .
Além do mais, é importante destacar que uma parte bastante relevante do romance é Lucy, a prostituta mais desejada da cidade, que representa o abandono, a exclusão e o estigma social, a jovem órfã e vítima de violência doméstica e sexual, se vê expulsa de casa pela própria tia para proteger o marido abusador. Essa história demonstra a realidade de tantas mulheres brasileiras que, ao invés de proteção, encontram hostilidade dentro do próprio lar. De acordo com a pesquisa “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado”, foi tido que 23% das mulheres brasileiras já sofreram violência doméstica, e muitas não denunciam por medo ou dependência, a construção da personagem Lucy, traz inconsistências ao sugerir que ela “gosta” de ser prostituta, ignorando as condições de vulnerabilidade que a levaram a essa vida – o que pode ser lido como uma romantização de um dos ofícios mais perigosos do mundo para mulheres, como mostram dados da ONU.
Diante do exposto, pode-se dizer, portanto, que embora a escrita de Carla Madeira seja sensível e poética, o livro erra ao tratar com leveza temas que necessitam de mais seriedade e responsabilidade narrativa, entendemos que o livro acerta ao denunciar o machismo estrutural, mas falha ao não apresentar alternativas reais ou ao sugerir que o amor pode redimir qualquer tipo de violência. Assim como um rio que transborda e destrói, mas também fertiliza, "Tudo é Rio" nos obriga a refletir sobre o que aceitamos como natural em nossas relações e sobre o papel da literatura em construir ou desconstruir imaginários sociais.
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